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LÍNGUAS DESATADAS

CORAÇÕES KAMIKAZE (1986, dir. Juliet Bashore)

ENTREVISTA COM JULIET BASHORE

CORAÇÕES KAMIKAZE
(1986, dir. Juliet Bashore)

ENTREVISTA COM
JULIET BASHORE

Queria começar com algo que estou muito curiosa: como estão Sharon Mitchell e Tigr hoje em dia? Como elas seguem com suas vidas?

Então, Sharon Mitchell... eu tenho bastante contato com ela. Ela me manda mensagens quase todos os dias. Vive me mandando mensagens, manda suas últimas fotos nua da academia. Ela continua sendo uma exibicionista. E ela está ótima.

A Tigr está fora de contato. Quando fizemos o relançamento do filme, tivemos uma conversa longa, de umas duas ou três horas, entre eu e ela, mas ela não quis se envolver com o relançamento. Ela não quer que ninguém saiba sobre sua vida anterior. Está vivendo com outro nome, não usa mais Tigr, então isso tudo é uma parte secreta da vida dela. Ela cortou laços com esse passado e não quer ter absolutamente nada a ver com a Mitch. Então é isso. Ela apagou completamente essa realidade da forma como vive hoje.

Foto recente de Sharon Mitchell, enviada por Juliet Bashore.

Pergunto isso porque, na nossa exibição do filme, durante o debate, muita gente comentou como elas eram descoladas, sabe? Especialmente a Sharon Mitchell, mas também a Tigr. A gente via elas como um coletivo muito interessante, e a Sharon Mitchell tinha um magnetismo muito forte. Como ela era atraente, mas não no sentido tradicional de beleza, e sim de magnetismo mesmo.

Sim, ela era muito magnética. Sempre foi. Isso é verdade.

Sobre a Tigr, queria comentar também — e isso tem relação com sua outra pergunta, sobre a questão da androginia e da Mitch. Numa versão anterior do filme, isso aparecia muito mais. A Tigr tinha toda uma análise sobre a androginia e sobre a simbologia da cobra, ela fazia comparações entre a Mitch e uma cobra. Era quase algo meio hippie, tipo dos anos 60 mesmo — essas ideias de androginia e imagens quase de tarô. Também tínhamos entrevistas com algumas pessoas trans que conhecíamos e que faziam parte da cena, mas que eu acabei não incluindo. Hoje eu meio que me arrependo de não ter incluído mais disso, porque tive que tomar uma decisão — e senti que estava dividindo o filme em dois caminhos temáticos diferentes. Então acabei cortando a maior parte disso e também todas as entrevistas com as pessoas trans, porque elas não estavam diretamente ligadas ao mundo pornô. Eram mais amigas da Mitch e da Tigr, pessoas com quem elas conviviam — eram mulheres trans — e eu cortei porque achei que era demais, e que confundia o tema. Mas, na época, era algo muito forte no filme, e fazia parte da cena de São Francisco. Ainda está ali, de certa forma, em pequenos detalhes. Ainda infiltra o mundo do filme. Mas não de maneira pesada, nem na narração, onde antes aparecia bastante. A Tigr falava muito sobre querer explorar a androginia. Acho que essa era a palavra dela mesmo — ela usava muito “androginia”.

Uma parte do filme que me marcou muito foi quando a Sharon Mitchell disse “sou trysexual”. Me surpreendeu bastante, porque em muitos momentos ela parece um não-binárie, né? Ela até diz: “sou meio homem, meio mulher”. E acho que isso envelheceu muito bem, porque é um tema muito discutido hoje em dia, e é bom ver que nos anos 80 isso já existia. Até porque hoje em dia a direita tenta dizer que isso é novo, que não existia.

Ah, isso é verdade. Sim, não é nada novo. Na verdade, é algo antigo, tradicional. Era isso que a Tigr acreditava — que era uma realidade quase ancestral. Ela via isso como uma sabedoria antiga. Mas também, tanto para a Mitch quanto pra mim, havia uma ligação com os anos 60, porque éramos crianças nessa época, e naquela década acontecia toda uma revolução sexual. A gente cresceu enquanto os adultos viviam essa revolução sexual. Então crescemos num momento em que transar com homem, com mulher, era tudo meio misturado... havia orgias, todo mundo estava meio que se moldando e não existia uma identidade de gênero específica. Isso nos marcou muito. Crescemos num tempo em que não havia uma identidade de gênero tradicional. E depois, nos anos 80, isso parecia normal para nós, porque tínhamos crescido nesse período experimental dos anos 60

Pensando nessa comparação com hoje, te surpreende o ressurgimento do interesse por Corações Kamikaze? Esse novo público que o filme conquistou?

Quando fiz o filme, sempre achei que ele teria um público, principalmente por causa do tema pornô. Eu pensava: “isso é algo que sempre vai interessar as pessoas”. Então, historicamente, só esse aspecto já seria interessante como um estudo sociológico de época. Mas claro, eu nunca imaginei que essa transformação aconteceria. Isso foi totalmente… Foi chocante na época. Era algo muito tabu. Havia uma cena lésbica inteira que era contra essa sexualidade ambígua — se você era lésbica, tinha que ficar só com mulheres. Se você era lésbica, era lésbica. Então isso era muito transgressor na época.

E pra mim, como cineasta, eu nunca me senti como uma cineasta lésbica. Me interessava mais por essa sexualidade fluida. Por exemplo, havia uma revista antiga chamada Semiotext(e), que teve uma edição sobre polisexualidade, e aquilo falava muito comigo. Nunca senti que me encaixava na categoria de “cineasta lésbica” — isso não parecia autêntico para mim. Desde a primeira vez que transei, transei com homens e mulheres. A Sharon Mitch também. Nós duas tivemos nossa primeira experiência sexual por volta dos 12 ou 13 anos, com homens e mulheres. E sempre foi assim pra mim. E isso sempre foi uma transgressão dentro do mundo lésbico. Sempre nos sentimos um pouco foras-da-lei.

Então sim, a resposta é sim — me surpreende muito esse novo despertar. Eu imaginava que o filme sempre despertaria algum interesse, mas não que haveria tantas pessoas como nós no mundo, com essa proliferação que vemos hoje. Sempre achei que seríamos foras-da-lei. E agora, estamos voltando a ser, com essa nova onda da direita. Mas houve um período, alguns anos atrás, em que isso parecia estar vivo. E isso foi inesperado.

Foto recente de Juliet Bashore.

Uma das partes mais interessantes do filme, para mim, foram as cenas nos sets pornôs, porque acho que elas também escancaram a estrutura do próprio filme. Você nunca sabe se é real, se é falso, certo? Então, isso dialoga com a própria realidade do pornô. Tipo, o pornô é real ou não? É sexo de verdade ou não?

Havia dois polos dessa ideia. Um era o polo da Mitch. Para a Tigr, ao longo do processo de fazer o filme, ela foi percebendo — ou passou a acreditar — que a Mitch era uma pessoa falsa, que estava sempre atuando, e que elas nem estavam realmente fazendo amor. Para a Mitch, tudo aquilo era uma performance. Então, quem ela era de verdade? Será que havia algo autêntico ali? Ela era mesmo uma pessoa real?

A Tigr começa querendo fazer esse filme como uma espécie de homenagem à sua amante, que ela acreditava ter potencial para ser uma grande atriz, mas que nunca tinha tido a chance. Então, o objetivo era fazer um filme que mostrasse o talento e a capacidade da Mitch. Mas havia também um subtexto: em algum nível, a Tigr sabia que a Mitch não queria transar a menos que houvesse uma câmera presente. Então tinha esse lado também.

No meu caso, formalmente, o que eu queria fazer era um pouco diferente do que você descreveu como cinema vérité. Eu queria que o filme começasse como uma representação falsa e, aos poucos, fosse despindo o artifício cinematográfico até se tornar cinéma vérité, algo real. Então, queria começar com aquelas entrevistas “certinhas” para a câmera, quase como se estivéssemos tentando encobrir o quão nojenta a indústria pornô podia ser. Eu queria que o filme começasse como uma propaganda e fosse gradualmente se desintegrando até virar esse registro cru e real.

A cena final, em que elas estão se drogando, originalmente deveria ser uma grande cena de amor entre Mitch e Tigr — essa era a grande fantasia da Tigr. Mas a Mitch nunca quis participar de uma cena de amor. A gente vivia correndo atrás dela com a câmera, tentando conseguir esse momento que a Tigr sonhava. No fim, a cena de uso de drogas acabou se tornando, digamos, o money shot — como se chama no mundo pornô.

Mas também teve algo que surgiu no debate depois da exibição, e que ficou na minha cabeça. Alguém da plateia disse que, para ela, o tema do amor e do desejo foi o que mais se destacou, e que não parecia que você, como diretora, estava preocupada se o filme era ou não um documentário.

O que eu queria era que a forma do filme fosse ambígua nesse sentido, da mesma forma que a Mitch era ambígua em relação a ser ou não real. Eu queria que a forma do filme refletisse esse dilema sobre a personagem — que uma coisa espelhasse a outra. Essa era a ideia: manter sempre essa ambiguidade.

Havia também uma cena que eu acabei cortando, que chamei de “cena Dziga Vertov”. Era sobre a mecânica do projetor, do filme e de toda aquela engrenagem. Naquela época, o projetor tinha um fusível ou uma lâmpada que literalmente queimava — dava para ver a chama acender. E a cena era toda sobre essa mecânica. Eu tentava focar na relação entre o mecânico e o emocional. Então, sim, a ambiguidade estava lá de propósito. Não é que eu não me importasse se era ou não documentário — é que o meu interesse estava na diferença entre teatro e registro documental.

Quando você estava fazendo o filme, disse que tinha essa ideia inicial. Mas, às vezes, quando a gente termina um filme, acaba aparecendo algo que não esperávamos. Isso aconteceu quando você viu o corte final de Corações Kamikaze?

Na verdade, sempre senti que ainda faltava alguma coisa, algo que eu não consegui capturar totalmente, que eu não consegui alcançar. Hoje, penso em cenas que gostaria de ter incluído, ou que talvez não tenha ficado claro o suficiente que a Tigr estava fazendo o filme… que o filme inteiro era uma homenagem à amante dela, uma forma de capturá-la.

Na época, quando terminei, senti que não tinha conseguido. Ainda faltava algo. Eu não tinha realmente contado a história, o drama parecia meio ausente. Mas agora, muitos anos depois, existe um senso de conclusão, uma completude. De certa forma, isso só aconteceu com a passagem do tempo. Ainda assim, lamento… gostaria que pudesse ter sido ainda mais.

por MANU COUTO

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