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VARIETY

O IMPÉRIO DOS SENTIDOS (1976, dir. Nagisa Ōshima)

QUANDO O CORPO NÃO TEM MEDO DE SER TUDO

O IMPÉRIO DOS SENTIDOS
(1976, dir. Nagisa Ōshima)

QUANDO O CORPO NÃO TEM MEDO DE SER TUDO

Em 1976, a França aboliu as leis de censura e a pornografia passou a ser legalizada. Esse contexto específico permitiu que o diretor Nagisa Ōshima tivesse liberdade plena sobre uma obra erótica, sem censuras, e a partir disso a produção da obra franco-japonesa O Império dos Sentidos foi possível. O filme aborda o sexo, a imagem sexual e a figura do erotismo de modo especialmente provocativo, explícito e cru, sem deixar de lado o romantismo e o misticismo.

O caso retratado é baseado na história real de Sada Abe, que ocorreu em Tóquio em 18 de maio de 1936. Sada, uma ex-prostituta casada, agora trabalhando como empregada do hotel, inicia um caso de amor com o dono desse hotel, Kichizo Ishida. Os dois entram num mundo à parte em que apenas o desejo sexual é importante. Com o escalar do desejo e exploração dos limites, Sada acaba estrangulando Kichizo até a morte.

Mas por que explorar esse desejo sexual? E por que explorá-lo dessa forma? O que tem de tão central para o desejo para que esse recorte tenha qualquer impacto? Quando tratamos do desejo no cinema, falamos de duas coisas: de movimento e de intimidade. Só existe narrativa porque existe movimento, e só existe movimento por causa do desejo. O desejo tem muitas formas de ser, nem todo desejo é inerentemente sexual. Mas o desejo sexual é uma das abordagens dadas ao desejo e que percorre muitas esferas da vida desses personagens, trazendo à luz aspectos da sua personalidade que só são explorados a partir da dinâmica sexual. Sabemos mais desses personagens porque estamos presenciando algo que normalmente não é explorado e nos relacionamos de alguma forma com aquele desejo, seja pela empatia, seja pela repulsa, seja pela apatia.

O ERÓTICO, O PORNOGRÁFICO E O
PAPEL DO EXPLÍCITO

Quando o cineclube iniciou a mostra, como eles trouxeram nas exposições iniciais, se buscou trazer para um ambiente coletivo uma discussão mais íntima, e afastar o sexo desse lugar de desconforto, relegado ao consumo de sexo como um produto massificado e exportado pela indústria pornográfica. Esse sexo geralmente é explorado com a impessoalidade: no pornô genérico, não sabemos quem são aquelas pessoas, o que elas fazem, como pensam; quando o erotismo e o pornô são trazidos para o cinema, esses personagens passam a ter voz e se tornam reais, os desejos e a história ultrapassam a satisfação sexual. O pornô clássico não se preocupa com planos, com história, com o visual e com as sensações – o foco é o ato mecânico, com duração suficiente para que o prazer seja satisfeito; no cinema, vemos uma dinâmica sexual explorada com mais camadas, a inserção de uma narrativa potencializa e humaniza os indivíduos que fazem parte do momento. Conhecemos os personagens a partir do que o desejo sexual representa para eles e o que ele nos diz sobre quem eles são – afinal, quem somos sexualmente também faz parte de nós.

Esse filme criou uma grande polêmica na época por retratar cenas de sexo explícitas e longas, que ocupam a maior parte da duração do filme, que trazem um sexo não coreografado e não simulado. Taxado de obsceno, o filme foi proibido em diversos países, inclusive no Japão, sem jamais ter sido exibido sem censura no país. Até hoje essa polêmica se mantém em algum nível, por ser um filme explícito demais. E o que é ser explícito demais?

A classificação de um filme como erótico ou pornográfico traz algumas nuances. No filme comum, o sexo é subentendido, as carícias começam e, mesmo se houver nudez, normalmente ocorre um corte para a cena do pós sexo, com os personagens na cama - sabemos o que aconteceu, mas não estivemos presentes no ato. No filme erótico, o sexo é simulado, acompanhamos os movimentos e há nudez, mas geralmente não vemos nada explícito - uma barreira de censura se mantém. Já num filme pornográfico, como é o caso de O Império dos Sentidos, todos esses elementos estão presentes – estamos presenciando o sexo real, como ele é. No filme, o sexo não é dispensável, nem um adereço, o sexo é tão protagonista quanto Sada e Kichizo. O pornô no cinema existe e deve servir às idealizações que genericamente são retratadas nos filmes, seja no amor, na briga, na tragédia, ou na infância. Essa servidão não cabe a este filme, que, ao se desprender dessas amarras, corrompe e choca o espectador.

Normalmente, a nudez e as cenas sensuais são relegadas ao espaço de dispensabilidade da narrativa. Face à sugestão do sexo, o espectador se sente desconfortável e se retrai. Há um estigma ainda maior quando essas cenas sexuais são explícitas e vemos “mais do que deveríamos”, por se relacionar com uma falta de finesse e com uma arte suja, marginal, vulgar, que serve à perversão, que corrompe o espírito e que não possui valor. Uma coisa é falar de sexo; outra, mostrar o sexo. Então por que ver o sexo explícito, se ele é desconfortável? A classificação do filme como pornográfica – e não apenas erótica – é polêmica, pois o estigma da retratação do sexo segue o estigma do gênero abordado e, assim, diminui o status de arte da obra, e de seus espectadores como consumidores de um conteúdo grosseiro e pouco refinado.

Por que ver um filme explícito se o que buscamos com o filme não é um orgasmo? Ou será que é deturpado demais que os sentimentos evocados por um filme possam ser processados de outra forma que não pela satisfação? Há um retorno àquele pensamento de que o sexo só pode ser íntimo e privado, e essa intimidade também implica que ele não seja explorado – que mesmo sozinhos, não deveríamos estar assistindo a esse tipo de conteúdo, porque ele é obsceno.

Se aceitamos que a arte existe para provocar sentimentos, também temos que aceitar que esses sentimentos podem ser bons ou ruins, prazerosos ou desconfortáveis. E se aceitamos que a arte pode ser desconfortável e provocativa, por que não aceitar sentir tesão ao ver um filme? Essas emoções e sensações também fazem parte de quem nós somos, poder explorar e discutir isso sem pudor também faz parte de descobrirmos mais sobre quem somos e qual o papel do sexo nas nossas vidas, na vida das pessoas que estão sendo expostas, o que aquela relação nos revela sobre o que está acontecendo ao redor, e, finalmente, aceitar os sentimentos esse material evoca no nosso íntimo.

É curioso ver como algumas análises apontam como o filme é bom “apesar” de ser explícito quando, na realidade, muitas das qualidades do filme residem por ele ser explícito: se forma e conteúdo são uma só coisa, esse filme só exprime a ânsia, a obsessão e o delírio da protagonista porque ele escolhe mostrar o sexo dessa maneira – esse aspecto é essencial a tudo que o filme se propõe a ser. É pelo obsceno que Nagisa conta essa história, porque a obscenidade faz parte dos traços dos seus personagens. Se ele buscasse explorar esses mesmos temas por outra lente, estaríamos vendo outro filme. A combinação dessas cenas de sexo com a visão artística e estilizada do diretor, com os planos escolhidos e a escolha das cores permite que o filme ocupe espaços de maior relevância e apreço. Quando falamos de filmes B e pornochanchadas, há uma maior dificuldade para receber o status de arte – o senso estético é determinante para a classificação artística.

No filme, os personagens renunciam ao pudor, o que é essencial para entendermos como eles se relacionam com o desejo: insaciável e irrestrito – igualmente, o diretor nos convida à renúncia desse pudor para aceitarmos acompanhar esses personagens. Quando o cinema se propõe a explorar diferentes narrativas, o que diferencia cada obra audiovisual é a escolha do plano e do foco, a escolha do que está sendo enquadrado e, portanto, a forma que essas histórias vão ser contadas. O recorte dado por um diretor determina o que vai ser visto, sentido, dissecado e o que vai permanecer no nosso íntimo após essas horas – as palavras são diretas, enquanto o visual é abstrato, então impacto visual é determinante, e o que vemos é cru. Falar de sexo não é a mesma coisa que mostrar o sexo, mas ao mostrar o sexo, estamos também criando espaço para discutir ele – a linguagem dos símbolos torna subjetiva a leitura do que está sendo mostrado, e a partir disso cada um vai ter reações diversas a esse conteúdo.

No ensaio “Theory of Experimental Pornographic Film” (Teoria do Filme Pornográfico Experimental), Nagisa Oshima fala que “a pornografia é baseada em mostrar aquilo que está escondido e que queremos ver”, ao mesmo tempo que aponta que a obscenidade é aquilo que não podemos ver, e só é obsceno porque não podemos ver; mas a partir do momento em o que é obscuro vai à luz, a obscenidade desaparece. A pornografia se relaciona diretamente com o obsceno e a exploração dessa obscenidade. Ao desconstruir a sua existência, acaba com o tabu e nos faz refletir sobre o significado e o espaço do sexo nas nossas vidas. A liberação sexual trazida pelo liberalismo retira o estigma do sexo como algo sujo e imoral, permitindo a exploração da esfera sexual do indivíduo. Mas essa desestigmatização não basta, já que o sexo ainda ocupa um lugar de marginalidade e que não deve ser exposto, apenas praticado e, se possível, que essa prática seja silenciosa – é preciso refletir sobre o sexo, se permitir sentir prazer e explorar esse prazer sem pudor.

Por fim, penso que a arte é construída a partir de uma visão e uma técnica, seguida por regras que determinam como essa técnica será mostrada e, a seguir, pela quebra dessas mesmas técnicas – é na quebra das regras que a arte encontra sua voz e sua relevância, porque nos deparamos com algo novo e questionamos o tradicional. Então deve existir espaço para fazer, ver e apreciar a arte quando ela escolhe nos mostrar algo diverso. Isso existe sem que haja necessidade de uma justificativa maior, a visão do diretor é o suficiente, afinal, a arte só serve à arte.

A DINÂMICA DO DESEJO E A SUBVERSÃO DOS PAPÉIS

Voltando a história do filme, o que mais se destaca na narrativa é a dinâmica estabelecida entre Sada e Kichizo. A partir disso, passei a buscar compreender: o que é o desejo para cada um? Qual o papel que eles exercem sobre o outro e para si?

A narrativa que o filme traz é a do despertar da paixão, seguido pela exploração de um desejo adormecido, a realização do poder, o exercício desse poder e o rompimento do limite do outro. Primeiro, é preciso estabelecer o contexto em que os personagens se encontravam no início do filme: Sada, uma ex-prostituta casada, vira a empregada de Kichizo no seu hotel. A primeira vez que Sada vê Kichizo, ela o observa transando com a esposa sem ser vista. Já quando Sada cruza com Kichizo, ela acaba de ser humilhada e xingada pelas suas colegas de trabalho por ser uma ex-prostituta. É a partir dessa dinâmica que ele a procura e inicia o contato sexual – ela servindo a ele.

Uma das primeiras cenas de sexo que nos é mostrada acontece enquanto Sada está limpando o chão do hotel. O desejo inicial ocorre a partir da combinação da atração física e da traição com as dinâmicas de poder e de amor proibido. A partir disso se estabelece um fascínio pelo corpo do outro e pelas sensações novas que ele traz, como se a partir daquele momento o corpo do amante fosse uma extensão do seu corpo. É o despertar e a descoberta do desejo e da intensidade que ele pode ter. Sada fala que se sente renascer.

O marido de Sada é um acadêmico muito mais velho, incapaz de satisfazer ela dessa maneira. Antes disso, como prostituta, os encontros sexuais de Sada não possuíam essa sensualidade estabelecida pela dinâmica e pela atração física pelo outro. A partir do momento em que Sada passa a transar com Kichizo, é ela quem deseja, deixando de ser apenas o objeto de desejo. Sada finalmente descobre o desejo com o início dessa relação e se depara com a intensidade existente quando o sexo ultrapassa a mecânica física. Antes, Sada era quem servia, mas com o início do caso entre os dois, Sada encontra uma dominância sobre Kichizo e passa a exercer e explorar esse lado até então reprimido. É o desejo de Sada que centraliza a narrativa, que se exprime inclusive na posição sexual: é geralmente ela quem fica por cima no sexo.

Muito do erótico está na antecipação do desejo, na sensualidade da provocação e no toque anterior ao prazer que cria a tensão sexual. Aqui, o diretor escolhe explorar a realização do desejo, a exaltação dos sentidos da satisfação – é a tensão sexual do ato em si. O ato é retratado sem pudor algum, de forma idêntica a falta de pudor que os protagonistas passam a ter. Se no início o caso dos dois era escondido, no momento em que fogem escondidos e passam a frequentar hospedarias, os empregados e as gueixas desses locais se tornam tão espectadores das cenas quanto nós.

Essa exposição passa a ser mais um elemento explorado na relação dos dois, o olhar do outro como um elemento que traz prazer. A profundidade da busca pelo prazer dos dois passa a ter mais camadas – não é só a dinâmica de poder, agora invertida, mas também a participação indireta de terceiros, que escala para o sexo grupal na cerimônia de casamento que o casal finge celebrar e a inserção de elementos não usuais – do ovo cozido que é inserido na vagina de Sada e, após, comido por Kichizo, até passarem a explorar o prazer na dor e na violência.

Sada demanda diariamente, por horas a fio, sexo de Kichizo, tornando-se impaciente e agonizando com a ausência do amante, ao ponto em que ele comenta que fica em dúvida se seu pau pertence a ele ou a ela. A vontade de Sada independe das circunstâncias, de modo que eles passam dias transando sem quase sair do quarto, sem limpar o quarto e sem comer.

Mas esse desejo dela exige devoção e, com frustração, demanda também a sujeição do amante, das gueixas, dos serviçais e dos outros personagens que passam a ser envolvidos na sua fantasia sexual inesgotável. A satisfação do desejo vem a partir dessa dominação psicológica que, apesar de ser completamente explícita, toma contornos especiais. A sede é insaciável, o desejo é fortalecido pela sua realização e incompletude. É a impossibilidade de fundir-se ao outro que causa a frustração.

Uma narrativa típica defende que nesse filme os dois personagens são consumidos pelo desejo até chegar ao ponto em que eles se consomem fisicamente por ele. Mas na realidade, essa crescente do desejo carnal e obsessão é, em sua maioria, percorrida por Sada, que exerce sua dominância sobre o amante e ele, por sua vez, se deixa ser dominado. O desejo de Sada está em possuir, enquanto o desejo de Kichizo está em satisfazer as vontades dela, num ato de total devoção. Porém, essa devoção só existe pois Sada tem a ânsia de dominação e de consumo do seu amante, até não restar nada.

É uma espiral esperada que o escalar da violência envolta em uma camada de desejo cego, desafie os limites do corpo até ultrapassá-los. A exaltação dos sentidos, a corrida pelo prazer e a ânsia pelas sensações podem cessar e retornar a calma usual da vida cotidiana, ou então podem transcender para além das barreiras físicas, rompendo com a vida – o ápice do desejo termina na morte. O erotismo da descoberta do desejo é o combustível da paixão consumidora que quer, ao fim, extinguir-se em si mesma. O grotesco aqui é o fruto esperado do desejo carnal, é o fluxo contínuo e frequente da energia que consome a protagonista.

Na cena final, após o enforcamento, a constatação da morte e a amputação do membro do amante, Sada escreve, com sangue, no tronco de Kichizo: “Sada Kichi nós dois para sempre”. Com o pau de Kichizo, ela sai caminhando por Tóquio. O conjunto de tudo - o enforcamento, a amputação, a inscrição, Sada carregando o pau de Kichizo - possui uma conotação quase sacrificial e ritualística de devoção final ao amante. Uma homenagem ao que foi vivido, uma declaração e um ato final de amor, que dá sequência à violência inicial.

Sada escolhe extinguir o prazer e a ânsia, eliminando completamente a fonte desse prazer e acabando com a possível frustração da perda do amante - a morte é preferível ao fim do caso dos dois e Kichizo se eterniza na satisfação da vontade dela e se submete a sua vontade inteiramente. Mas além dessa escolha de Sada, existe ainda uma submissão implícita: a de Kichizo à morte, porque ele escolheu morrer.

Durante a estadia dos dois, eles se afastam completamente da sociedade, criando um casulo protegido do mundo exterior, intocável. Mas no terceiro ato, Kichizo sai um dia para caminhar em Tóquio e se depara com o exército japonês marchando, erguendo a bandeira do sol nascente. Há um vislumbre do futuro próximo da guerra e, a partir desse momento, ele se torna extremamente melancólico. Retornando à estadia dos dois, ele pede para ser estrangulado durante o sexo. É ele que sugere à Sada que, para atingir o prazer total, é preciso ir até o limite, ele pede para ela não parar. Kichizo se depara com a guerra e escolhe a devoção completa e extrema, aceitando que para satisfazer Sada, ele vai morrer, e que essa morte não é ruim, porque assim ela vai estar salvando ele de um destino pior.

por BRENDA LOMBALDO

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