OS HOMENS QUE EU TIVE
(1973, dir. Tereza Trautman)
Numa terça-feira à noite, sento na segunda fileira da Sala Redenção, numa sessão repleta de conhecidos, onde será exibido "Os Homens que Eu Tive" de Tereza Trautman, filme censurado pela ditadura militar brasileira. Logo após a apresentadora da sessão falar “bem vindes” (saudação comum de espaços progressistas como o do cinema universitário), escuto atrás de mim uma voz grossa que resmunga: “Bem vindes? Essa coisa não existe”.
A frase provém de um senhor que, em sequência, passou o filme inteiro fazendo barulho. Ora era um comentário sobre o que estava em tela, ora era uma risada, ora ele cantando uma música que tocava no filme.
Na lomba de um bairro arborizado estão, da direita à esquerda, Dode e Pity, sentados numa mureta, e Torres, de pé. Após um breve plano geral que mostra a casa onde estavam anteriormente, são enquadrados no centro de um longo plano médio, onde os personagens discutem descontraidamente sobre os rumos da vida de Pity.
Dode se levanta após ouvir que Pity vai ter um filho e pergunta casualmente: “E eu posso saber de quem é o filho?”. Ela responde sacudindo a cabeça: “É meu”, causando sorrisos. Em sequência, ela diz que o chamou para propor o desquite, caso contrário o filho vai sair com o sobrenome dele.
Após responder que não tinha pensado nisso, Dode novamente pergunta se Torres era o pai. Para o que Pity responde levantando os ombros e sorrindo para seu companheiro, que lhe devolve o sorriso e se apoia num poste.
Com honesta curiosidade, Dode lhe pergunta se ela se importa do filho levar o nome dele, o qual ela sacode a cabeça e diz que não. Ele se vira e repete a pergunta para Torres, que também sorri e diz casualmente que não.
Uma música alegre começa a tocar. A câmera se afasta revelando o restante da lomba que os personagens sobem olhando tranquilamente para cima. Eles dão os braços e saem juntos de cena, abrindo espaço para um letreiro azul que anuncia o final do filme.
Puxo uns aplausos logo antes das luzes acenderem e me levanto para ir ao banheiro. Não consigo parar de pensar no velho. No começo sentia irritação pelas interrupções dele, mas esse sentimento foi abrindo lugar para o de pena. Fiz uma psicanálise de boteco e concluí que ele estava querendo chamar a atenção, imaginei que com o tempo as pessoas foram se afastando da vida dele, deixando-o preso ao destino de perturbar sessões de cinema universitário.
O que me levou a pensar sobre a Pity, que passou o filme inteiro trocando de parceiros, mas nunca perdia um núcleo de apoio, composto ou por amigos, breves afetos ou até mesmo antigos amores. Me perguntei o que seria do futuro dela agora com o envelhecimento, o qual ela não parecia se preocupar muito no final do filme. O próprio filme não parecia se preocupar com o envelhecimento dela. A confiança que ele tem nela vem à tona a partir da forma do filme.
Em todos os momentos decisivos da vida de Pity, onde ela precisava organizar seus vários sentimentos e desejos e fazer uma escolha, a mise-en-scène lhe dá total liberdade e a livra de julgamentos. A câmera sempre se posiciona à distância, deixando clara a qualidade de mero observador de quem a vê por meio do filme. As cenas terminam no momento em que a personagem se decide, o plano termina e o corte revela o resultado de suas decisões, criando uma elipse temporal, mostrando-a contente.
Nesse mundo criado pelo filme, não existe lugar para julgamentos, o que importa é a decisão de Pity e seus sentimentos, nada mais. Aí é onde o filme chega na política, para além de representar uma mulher libertária, crendo-a autônoma para tomar suas próprias decisões, ela é liberta pela própria forma como é filmada. Para além de atacar idéias conservadoras, ela se protege de olhares conservadores.
Divido meus pensamentos no debate pós-filme, revelando minhas dúvidas sobre o futuro da protagonista, o que foi acompanhado de algumas respostas e risadas. Na saída do cinema, uma senhora chama a minha atenção e me conta um pouco da vida dela. Diz que trabalhou no Instituto de Física da UFRGS durante a ditadura. Fala que o nome dela é Irene e ironiza o menino fumando um cigarro, dizendo que na época dela, era o baseado que fumavam e que era por meio dele que as pessoas se libertavam de seus preconceitos.
Para finalizar, ela diz que andou entrando em contato com alguns ex-namorados (agora casados) pelo Whatsapp. Com um sorriso no rosto, logo antes de entrar em seu carro, ela fala: “os amigos e namorados também envelhecem”.