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VARIETY

VARIETY (1983, dir. Bette Gordon)

POR FAVOR OLHE PARA MIM,
MAS NÃO MUITO

VARIETY
(1983, dir. Bette Gordon)

POR FAVOR OLHE PARA MIM, MAS NÃO MUITO

Existe algo muito profundo em olhar. Eu só existo porque alguém em algum momento olhou para mim. Eu só existo no olhar do outro. E esse olhar, por mais que seja direcionado para o outro, sempre é um pouco egoísta. Eu tenho um pouco de medo de olhar e ser olhada de volta, ser percebida como um ser desejante. Vendo Variety, filme de 1983, dirigido por Bette Gordon, eu olhei para Christine, a personagem principal, e, mesmo que por um milissegundo, me senti olhada de volta. Os olhos são as janelas das nossas almas, dizem por aí. Discordo um pouco. Acho que os teus olhos, quando eu olho no fundo deles, são as janelas da MINHA alma. Posso até me enganar pensando que estou vendo a sua, mas não passa de uma mera vontade de se ver refletido no outro. E foi isso que ocorreu quando vi o longa. Christine, assim como eu, é recepcionista de um cinema - no meu caso, de um cineclube. Christine, assim como eu, sorri para todos que chegam e diz "tenha um ótimo filme" ou "Seja bem-vindo". Christine, assim como eu, sente curiosidade de olhar, mas não acha que mereça. Christine, assim como eu, nasceu mulher e existem coisas que só quem é mulher (de suas diversas formas de ser ou não ser em alguns momentos) entende. Esse medo de olhar específico é um deles.

O que será revelado sobre mim se eu me permitir olhar para você? O cinema em que Christine trabalha exibe filmes pornográficos, direcionados para o público masculino, obras perfeitamente esculpidas pensando no “male-gaze”. Christine sente curiosidade e de vez em quando olha para elas, revelando uma condição do seu sujeito que ela jamais pensou que seria capaz de adentrar, a de sujeito desejante. Como se ver como um ser desejante e capaz de olhar em um mundo que constantemente tapa nossos olhos? Digo e repito, o “female-gaze” não existe. Se você me conhece, sabe que eu amo definições, então aqui vai uma definição curta e simples que a IA DO GOOGLE me deu sobre male-gaze: “O olhar masculino (male gaze, em inglês) é um conceito feminista que descreve a forma como as mulheres são frequentemente retratadas na mídia e nas artes visuais, a partir de uma perspectiva masculina e heterossexual. Essa perspectiva tende a objetificar as mulheres, reduzindo-as a objetos de desejo sexual ou a papéis estereotipados, em vez de personagens complexas e com agência”. Quando digo que o female-gaze não existe, falo justamente sobre isso. O male-gaze é pautado em cima de um poder sobre os corpos e agências femininas que as mulheres nunca terão sobre os homens. Odeio quando palavras perdem sentido. Talvez, se eu parasse de querer buscar sentidos e definições eu não passaria meus dias na surdina de um cinema pornográfico hipotético apenas observando, apenas olhando, apenas implorando: Por favor olhe para mim de volta. Mas não muito, tal qual Christine.

Trocando de assunto como normalmente gosto de fazer, minha ideia original para esse ensaio era visitar um cinema pornográfico de Porto Alegre e escrever minhas percepções do espaço, uma análise pseudo-antropológica. Assim como muitas ações que poderiam ter sido tomadas por Christine no filme, não o fiz. Fiquei somente confabulando em meu apartamento o quão legal seria se fizesse isso. Senti um pouco de medo, confesso, de ir sozinha em um espaço, que em minha cabeça, seria tão chulo. Senti um pouco de preguiça também, não me farei de salame. Mas o principal motivo desse fato não ter sido consumado, foi a passagem incessante do tempo. Merda da modernidade líquida me pegou de novo, chega de imediatismo, não deu tempo, tinha coisas mais importantes para fazer, sempre tenho, deveria não ser assim, mas é. Vou agendar tudo isso de pensar em olhar, ser olhada, ser compreendida para amanhã. Vou curar minha obsessão pelo Sartre e pelo existencialismo em breve e daqui a 2 anos, quando revisitar essa zine, com outra cabeça e outros olhares, odiarei tudo que escrevi aqui. Peço que quando isso acontecer, Juliana Maria, tente olhar para si mesma através dessas palavras digitadas neste computador e não sentir tanta vergonha do que um dia você foi.

Acabo esse texto da mesma forma que o filme acaba. Com um plano de um carro na chuva e o sentimento de que algo falta para que tudo isso esteja completo, para que assim possa ser olhado.

por JUMA

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